Contra_Uso
Por Marcelo campos
Caminhar pela cidade, esta é a estratégia situacionista de Márcio Almeida. Sua produção artística articula materiais, métodos e conceitos que esgarçam as fronteiras disciplinares, ampliando ou aplicando o sentido de “arte”, entre aspas, em eventos do uso comum. Olha-se a cidade e a atenção recai sobre a própria indisciplinaridade gerada por aqueles que transgridem as regras, que abrem caminhos enviesados, que a ocupam à força, em vez de aceitar a regularidade dos traçados mais oficiais. A isso, Rogério Proença Leite denomina “contra-usos” , já que as demarcações físicas e simbólicas do espaço, segundo o autor, são qualificadas pelo uso. E justamente numa pesquisa sobre o bairro do Recife revitalizado, Leite aponta aquilo que não se deteve, refez-se pelo uso contra-ordinário.
A exposição Contra_uso, individual de Márcio Almeida no Santander Cultural de Recife, vem corroborar estas observações, a partir de interesses anteriores do artista, e abrir outras possibilidades de criação. Composta de fotografias, vídeo, desenhos e esculturas, para não chamar de objetos instalativos, a mostra parte de trabalhos que problematizam a idéia de ocupação. Falamos, hoje, em intervenções urbanas, projetos artísticos de interferências e vivências em casas, praças, residências, galerias, mesclando espaço público e privado. E por que não olhar a cidade? A própria cidade como ocupação, intervenção, e, sobretudo, contradição. A cidade é um conceito operatório? perguntará Michel de Certeau que a avalia, a partir de três vias: a produção de um “espaço próprio”, o estabelecimento de um “não-tempo”, a criação de um “sujeito universal” . Apenas nestes poucos graus de temperatura do que seja a pluralidade da cidade, já supomos várias utopias desfeitas.
Em “Waiting for Work”, Márcio pesquisa operários em obras da construção civil. Nesta série de fotografias, os trabalhadores aparecem descansando, na hora do almoço, aguardando o retorno ao trabalho. Ali, preconcebemos a urbanização de um lugar, sem noção de como ficará o resultado depois da edificação. A construção do espaço próprio, retomando Certeau, deve “recalcar todas as poluições físicas, mentais ou políticas que a comprometeriam” . O artista fotografa, justamente, a via da contaminação, a preguiça, o descanso, a quebra da ordem. Na paleta da fotografia, o amarelo dos uniformes, o laranja das sinalizações de alerta e dos materiais de segurança, a camurça dos concretos, o prateado das vigas metálicas. Focamos o corpo e a preguiça, eternas ameaças do progresso e do obedecer. A preguiça foi, para a história brasileira, motivo de leis, principalmente depois da abolição da escravatura, onde a população africana não estaria oficialmente domada. Aqui, a obra congrega ancestralidades variadas e demonstra que qualquer espaço de tempo num dia de labor pode estimular pequenas abolições. Vemos telhas de amianto servirem como camas, varais improvisados nos espaços de convivência, os corpos antes retesados pela postura do trabalho desfazerem-se em sono, malemolência. Por instantes, os corpos dóceis esperam o retorno, a repetição.
Na mesma pesquisa, Márcio observa o que ele chama de “Ícaros”, operários pendurados, próximos a abismos, por entre vigas. O corpo faz poses e contorções como pássaros, ameaça saltar, gruda-se para não despencar. A dança evidenciada pelas fotografias guarda certo grau de ironia, pois em vez da força física, dos músculos aparentes, como nos estivadores de Pierre Verger e Henri Cartier Bresson, vemos cenas de uma amplidão melancólica, capitaneadas por entre as geometrias da construção civil, por espaços que destinam-se a sustentação, à segurança, à certeza de durabilidade, por mais que, hoje, nem a maior torre do mundo esteja segura. Márcio Almeida tangencia esta contradição.
O projeto “Entre o novo e o nada” configura uma outra ocupação da cidade, agora não mais como obra oficializada por construtoras, mas por estratégias de invasão, de ocupação do terreno alheio. Em Sapucaia de Dentro, bairro fronteiriço, na periferia de Olinda, a condição dos moradores demonstra o contrauso sobre aquele lugar. Márcio Almeida ganhara uma verba para expor numa instituição oficial, um Museu, e resolvera pensar no caráter efetivo desta condição fronteiriça. Colocara dentro do espaço expositivo uma casa real, construída em madeiras e materiais de apropriação. A casa existia num terreno de invasão em Sapucaia de Dentro. Márcio negociara com a família, composta por um casal e um filho, uma troca. O barraco ficava por trás de um lixão, com todas as mazelas de poluição que isso representa. Os materiais da construção e os utensílios domésticos tinham odores impregnados, segundo nos informa o artista, odores do uso e do apodrecimento. Márcio foi a várias invasões com a proposta de trocar uma casa legalizada, comprada para o trabalho com a verba da exposição, em Bomba do Hemetério, bairro também periférico do Recife. Sapucaia, um lugar completamente plano, Bomba do Hemetério um morro, lugar elevado. O casal aceita e o artista transpõe toda a casa, incluindo seu mobiliário, para o Museu. Aqui, em Contra_Uso, Márcio expõe o vídeo de todo esse processo. O artista deixara a família vivendo na nova casa e nunca mais retornara, aceitando o silêncio do tempo, registrando imagens opacas da memória sobre tal experiência.
Em desenhos feitos exclusivamente para a exposição no Santander Cultural, Márcio Almeida cria a série “Inventário das ressignificações”. Em uma impressionante dissonância entre símbolos, palavras, objetos cotidianos, o artista rememora a casa de invasão e seus utensílios. Na circularidade do espaço em branco do papel, Almeida seleciona cadeiras, filtros, camas e adiciona palavras poéticas, mar, sonho, ar, “azul para extremo mar”. Tal qual a pesquisa sobre as mazelas de uma urbanização brasileira desenfreada, presente nos participantes da Nova Objetividade Brasileira, exposição histórica de 1967 no MAM do Rio de Janeiro, Márcio Almeida toca na urbanização das cidades. Naquela exposição, os artistas lidavam com as contradições do urbanismo, as caixas de morar de Rubens Guerchman, o popular revisto por Nelson Leirner, e, sobretudo, as favelas de Helio Oiticica,. Atentava-se para as diferenças sociais, a precariedade não apenas dos materiais, mas dos modos de vida na cidade grande. Nos trabalhos daquela época, palavras como “ar” declaravam a insuficiência do controle populacional, da urbanização poluída pela fumaça de óleo diesel. Se entendermos tal condição de modo atravessado, trans-histórico, voltamos a perceber o ar que nos falta. Dos gases tóxicos produzidos pelo lixo às condições insalubres de moradia. Dos usos oficializados pelas revitalizações urbanas aos contra_usos empreendidos por quem mais vivencia as cidades. Em tais contradições fica evidente a incompetência dos projetos urbanísticos em lidar com os becos, as ruelas estreitas, os “passadouros” mal calculados para a circulação, perfeitos para esconder o sexo furtivo, e a prática da bandidagem.
Nos desenhos de Márcio Almeida, tal denúncia funciona como sonho, vontade, desejo. Filtro para meia água, diz a frase desenhada. E aqui pensamos nas casas pobres que não conseguem chegar ao telhado de duas águas da herança colonial. A meia-água, a vida com o pouco quinhão, o desejo de ser potável, salutar, potente. Ao mesmo tempo, ser “de Dentro”, como o próprio nome do lugar, mais distante do litoral, dos prazeres, da ilusão praieira. Aqui, abro um parêntese para revelar uma conversa. Márcio Almeida me diz que escreve e repete “ar, ar, ar”, pois queria ser como Dorival Caymmi que ficara ensimesmado com a finalização de uma canção, cuja frase dizia: “o bem de terra é aquela que chora/ mas faz que não chora/ quando a gente sai/ o bem do mar (...)” abriu-se a reticência e Caymmi esperara anos para descobrir que a frase, o predicado para o bem do mar seria um pleonasmo, abre aspas, “o bem do mar é o mar/ é o mar/ que carrega com a gente pra gente pescar”. Márcio aqui, assume sua porção contemplativa, seu gosto pelo sublime, nas canções praieiras do baiano.
Ainda sob tal influência, o inventário das ressignificações gera, então, esta contradição, faz poesia com o que é falta. Falta que todos sentimos. Diante de uma única cadeira de praia da casa de invasão, Almeida resolve desenhar a cadeira para três, pois este é o número de componentes daquela família. Usa idiomas estrangeiros, francês, inglês, línguas oficiais, dos mandos, dos exploradores. Línguas que, segundo o artista, são usadas por completa incompetência de entendê-las. E, mesmo assim, lá vai ele formando frases toscas, erráticas. Todos os desenhos ativam-se a partir de memórias e mentiras sobre as coisas do barraco de Sapucaia de Dentro.
Depois de toda negociação e aceite da família para trocar de barraco, perguntaram ao artista: e a carie? A partir disso, Márcio entendeu que o buraco deixado pela casa de invasão abria uma cárie, não um espaço oficial, mas um vácuo apodrecido, uma cárie na boca banguela que Lévi-Strauss vislumbrara ao chegar pela primeira vez ao Brasil, avistando a Baía de Guanabara. Márcio, então, cria uma série desenhos, “Isso corta (It cut)”, onde mimetiza a falta dos dentes numa arcada que também se assemelha a um conjunto de tijolos, num misto entre construção e ruínas.
Como proposta subversiva para a continuidade da pesquisa sobre os terrenos de invasão, Márcio Almeida propõe espécies de kits, modos e materiais que serviriam para os que se interessarem em invadir terrenos baldios. Num conjunto de “faça você mesmo”, o artista lista componentes do projeto e mostra como montar a casa de invasão. Ao mesmo tempo, torna-se evidente o citado conceito de Certeau, onde o sujeito jamais atingira a categoria-tipo. Nem os utópicos projetos modernistas, das habitações populares, conseguiram normatizar o ato de morar. O estado passa ao largo da oficialidade dos fornecimentos de luz, gás, água. Enquanto isso, inventa-se. Inventa-se o “macaco”, termo usado para ligações clandestinas de luz, as mudanças são realizadas em carrinhos de feira. E Márcio Almeida estimula, ao mesmo tempo, que transfigura peças entre a arte e a observação quase etnográfica. E assim vamos entendendo que o “espaço é um lugar praticado” , suplantando quaisquer geometrias e regras. Enquanto o sujeito, universal e anônimo, só pode ser chamado de cidade. A própria cidade que para ser vivida estará repleta de contrausos.