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Pintura como jogo
Por Aguinaldo Farias

 


De um modo geral são pinturas de tons rebaixados e frios : azuis, cinzas, terras sujos e planos brancos, irregulares, cuja homogeneidade é perturbada por movimentos cromáticos subterrâneos, quase imperceptíveis, como os vasos capilares que se vão combinando com pequenas regiões manchadas de rosa sangüíneo tal como se entrevê quando passamos lentamente a vista pela pele do nosso corpo. Não há cores vibrantes ou expansivas, aliciantes pela alegria, como também é muito pouco freqüente a irrupção de formas cujos significados nos sejam familiares, por exemplo, as cabeças desenhadas a maneira de grafites e que invariavelmente visitavam suas pinturas anteriores. Desenhadas em pinceladas largas com rapidez e energia evidentes, imagens esculpidas, a meu ver aquelas cabeças desviavam a atenção do espectador desatento da atmosfera manchada e misteriosa em que elas flutuavam. Agora não, os desenhos podem se sobrepor ostensivamente ás manchas pintadas ou com elas dividir o campo da pintura, mas não representam isso ou aquilo, são esquemas estruturais, cordões de forca, linhas emaranhadas, texturas ou possível contorno de algo indecifrável.
Como se não bastasse esse corte em relação ás suas pinturas anteriores, Márcio Almeida aprofunda-se  por um caminho fragmentado, pedras irregulares juntadas num mesmo plano por ação de uma argamassa, mas que, ainda assim, em face do equilíbrio tenso do conjunto, nos faz crer que as contemplamos no que parece ser o momento imediatamente anterior ao seu esfacelamento e desaparição.
Entre as poucas pistas que Márcio Almeida oferece sobre o seu trabalho, quando fala ou escreve a propósito dele, está a idéia de dissecação. Uma noção que tanto pode se referir à atitude do cientista que se debruça sobre um corpo para, através de cortes efetuados com algum instrumento cortante adequado, poder melhor analisar sua constituição íntima, como confina com aspectos psicológicos quando, por exemplo, tentamos perscrutar alguém através de uma contemplação atenta aos detalhes que seu rosto vai deixando escapar: a direção variável do olhar, direto ou penso, o ríctus desenhados pela comissura dos lábios, a contração minúscula e rítmica acusada numa região da face. Mas em qualquer um dos casos, a atitude de dissecar põe em risco a perda do sentido de unidade em beneficio do fragmento, muito embora se possa argumentas que uma outra automaticamente se cria quando circunscrevemos ainda mais o foco da nossa atenção.
Os trabalhos recentes de Márcio Almeida discutem a visualidade como em exercício de dissecação. Separando ou sobrepondo o desenho da pintura, ele estabelece um jogo entre essas duas possibilidades expressivas. Em uma formulação feliz sobre esse assunto, o pintor paulistano Luis Paulo baravelli defendia a pintura como coisa vista de longe e o desenho como coisa vista de perto. Há uma correspondência efetiva entre essa frase e o que acontece. Planos coloridos podem enunciar de territórios a atmosferas. Coisas tão concretas como um retalho de chão ou o volume de um corpo, até uma cortina de chuva ou mesmo o ar. Dependerá apenas da ardilosidade do artista na aplicação da massa de tinta sobre a superfície da tela, obtendo um resultado capaz de afrontar os olhos com sua aspereza, ou uma transparência maior ou menor, capaz de sorver nosa vista para dentro de si, forçar sua elasticidade. Por conta disso, é inteiramente verossímil, tal como demonstraram as telas de Mark Rothko, habitar uma cor.
Já os desenhos estão para a ossatura como a pintura para a pele. Desenho é o visível sopesado e reduzido ao seu nervo, essência que também cabe na linha que faz o contorno de algo. Desenho é aproximar algo da mente, porque não basta vê-la com os olhos: é preciso sopesá-la, esquadrinhá-la, escrutinizá-la, para melhor entendê-la. Mas desenho, assim como pintura, será sempre e também retirar algo da mente, pois, se é certo que pintura e desenho são possibilidades expressivas, o leitor deverá considerar que o que foi dito, na conta de representação de algo por parte da pintura ou desenho, deve ser estendido à idéia de apresentação de algo por ambas. De acordo com a frase clássica de Paul Klee, segundo a qual o papel da pintura é tornar visível e não representar o visível, tanto as “atmosferas” quanto os “esquemas estruturais” aqui referidos são provenientes da capacidade de expressão do artista e não simplesmente dos fatos colhidos disso que, um tanto descuidadamente, chamamos de realidade.
Cada tela de Márcio Almeida é um fogo de justaposições e sobreposições entre desenho e pintura, de áreas claramente demarcadas ou de áreas cujas fronteiras se estilhaçam ou interpenetram-se, num movimento que tanto acontece em profundidade, quanta da dereita para esquerda e de cima para baixo. Cada imagem resulta ed um gesto diverso; cada fragmento, de uma modalidade de formalização: da pincelada ampla e expansiva, do impulso de transbordamento imanente ao ser, ao gesto conciso e cravado; do comentário que quase como um rumor se espalha sobre a superfície da tela sem, no entanto, velá-la ao ruído estridente e de ritmo sincopado. O grafismo, realizado em lápis ou ponta seca, acontece em linhas distendidas, linhas vibráteis, linhas que se fecham garatujando geometrias, ou quebradas de modo a sugerir signos de um alfabeto desconhecido. São mais largas quando feitas a pincel, sugerindo volumes mais francos e não raro acontece de serem tão cheias de si que chegam a suprimir o que lhe está por baixo, como a pretender silenciá-lo. Já a pintura, por si só de natureza mais desatada, é pelo artista concebida ainda mais, de tal modo que quando ele define um campo colorido é comum encharcar o pincel fazendo a cor escorrer para fora dos limites definidos pelo gesto. Embora dissolvida até a transparência, a cor aqui revela seu peso, o que justifica a predominância por tons mais sombrios e confirma o exercício plásticos, mesmo o mais espontâneo, como um exercício de cifra mental.

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